Enquanto a Câmara Municipal de Campo Grande anuncia mais uma tentativa de abertura de CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) para investigar os abusos do Consórcio Guaicurus, um documento fundamental segue esquecido na gaveta dos vereadores. Desde 2020, um laudo pericial detalhado, financiado pela própria Câmara ao custo de R$ 100 mil, revela mais de 20 irregularidades no contrato de concessão do transporte público da cidade.
Apesar de ter acesso a este documento há anos, os vereadores mantêm a prática de ignorar investigações aprofundadas sobre o sistema de transporte. Essa situação se arrasta desde 2012, quando o Consórcio Guaicurus venceu a licitação para administrar o serviço bilionário.
Blindagem e omissão dos órgãos fiscalizadores
O atual presidente da Câmara, vereador Papy (PSDB), não só se absteve de barrar o recente aumento da tarifa, aprovado pela gestão anterior, como também defendeu publicamente que a Prefeitura repassasse mais recursos às empresas de ônibus. Essa postura segue a histórica conivência da Casa de Leis com o Consórcio Guaicurus.
Oficialmente, a Câmara possui, desde fevereiro de 2022, uma Comissão Permanente de Mobilidade Urbana. No entanto, a comissão foi criada como uma alternativa à instauração de uma CPI, evitando uma investigação formal e concreta. Nos últimos 10 anos, pelo menos sete pedidos de CPI foram enterrados, enquanto o serviço de transporte público apenas piorava, com frotas sucateadas e menos linhas em circulação.
Outro órgão que deveria atuar como fiscalizador, a Agereg (Agência Municipal de Regulação dos Serviços Públicos), também tem sua atuação questionada, sendo alvo de suspeitas de inércia e favorecimento ao Consórcio.
Empresários vencem no tapetão
A ausência de ação dos vereadores e da Agereg facilita o cenário para os empresários, que recorrem à Justiça e conseguem reverter penalizações. Recentemente, o Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul (TJMS) anulou 269 multas aplicadas contra o Consórcio Guaicurus. A decisão foi tomada pela 4ª Câmara Cível, cujo relator, desembargador Sideni Soncini Pimentel, e o então presidente Alexandre Aguiar Bastos, atualmente estão afastados por investigações sobre um suposto esquema de venda de sentenças.
As multas anuladas estavam relacionadas a descumprimento de tabelas horárias, sucateamento da frota e atrasos recorrentes, problemas amplamente denunciados pelos usuários do transporte.
20 crimes e um laudo ignorado
O laudo pericial de 2020, encomendado pelo ex-vereador Vinicius Siqueira (MDB) a um PhD em Engenharia de Transportes da USP, lista 20 irregularidades graves, incluindo:
- Uso de frotas vencidas;
- Fraudes nos valores de combustível declarados;
- Manipulação na quilometragem percorrida;
- Irregularidades na exploração publicitária dos ônibus.
A análise embasou uma ação civil pública ajuizada em 2020 pela Associação Pátria Brasil, que pede indenização de meio bilhão de reais pelo serviço prestado abaixo dos padrões contratuais. A entidade também denuncia que o consórcio arrecada anualmente R$ 324 mil com publicidade nos ônibus, um fator que deveria reduzir o custo das passagens, mas que não é levado em conta no cálculo tarifário.
Nova CPI ou mais um engavetamento?
Em 2025, a Câmara Municipal ensaia apresentar um oitavo requerimento para abertura de CPI, diante do aumento da tarifa e da crescente insatisfação dos passageiros. No entanto, a história mostra que tentativas anteriores foram barradas sob justificativas burocráticas, como “falta de fato determinado” ou “requisitos não atendidos”.
A vereadora Luiza Ribeiro (PT) critica o modelo atual, destacando que o Consórcio Guaicurus continua lucrando, enquanto o serviço público prestado é cada vez pior. “O subsídio aumenta, a isenção tributária cresce e o valor da tarifa sobe, mas o que falta para esse serviço funcionar de fato?”, questiona.
Enquanto isso, os passageiros seguem sofrendo com um transporte ineficiente, esperando que, desta vez, a CPI saia do papel e não termine, mais uma vez, em pizza.
Deixe um comentário